terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Fatalité

Fatalité. Essa foi a palavra, enegrecida pelo tempo e bem profundamente entalhada na pedra, que li numa das paredes da velha Notre-Dame, naquela tarde perdida de abril. Fatalidade: eis o simples verbete que, num tempo de exaltados discursos e sinceras orações, conseguiu aguçar-me os sentidos e despertar-me do sono entorpecido no qual eu me deixara cair, fosse pela fome (que nos assolava a todos), fosse pela descrença que regia meus atos. Descrença essa que, em minha busca desesperada por orientação, levara-me até a Catedral, até o antro dos velhos monges, ao refúgio daqueles que, outrora – e ainda agora –, condenavam meu povo às chamas do inferno. Eu estava no covil dos lobos e buscava respostas de um Deus no qual não acreditava.

Curiosamente, é no medo que encontramos nossa coragem. Eu, é claro, não julgava dessa forma. Em verdade, eu estava demasiado perdida para me importar com meus atos, suas motivações ou consequências. Estava, literalmente, sozinha. E, sobretudo, sentia-me sozinha. Voltei os orbes azuis, incisivos, para o altar. Alguns metros acima do chão, a figura do Cristo crucificado refletia a luz amarelada das velas. Fitei seu rosto por um instante. O semblante tristonho, sofrido, fez-me pensar se não estaria prestes a chorar pelo que via e ouvia naqueles tempos. Ou talvez por todos os tempos já passados? A essa conclusão, seguiu-se outra, adversa: era Ele, que diziam ser infinitamente misericordioso e sábio, quem deixava toda aquela barbárie acontecer. Ou não era? Naquele pequeno momento de epifania, a comiseração transformou-se em revolta. Desviei o olhar para a parede novamente. Fatalité.

Recostei a cabeça contra a pedra fria e suspirei. Internamente, eu tentava adivinhar qual teria sido a alma amargurada que quisera deixar esse estigma de infelicidade dentro dos muros da velha igreja. E que tempos tinham sido aqueles, em que a palavra misteriosa fora gravada? Uma época pior do que esta? Dificilmente, imaginei. Nada parecia ser pior do que o presente contraditório e imundo. Um tempo em que a França buscava sua liberdade galgada no massacre, escrevendo sua história com sangue de inocentes. Sangue dos miseráveis. O brio da conquista era não só aniquilado, mas suplantado pela desumanidade. Suspirei novamente.

Fosse pelos tempo passados, pelo tempo presente ou pela comunhão de todas as desgraças já realizadas na história do mundo, o fato é que todos os deuses pareciam ter nos abandonado, fechado seus olhos para a imundície que, em nome de uma deturpada liberdade, perpetuava em cada esquina e tornava-se, cada vez mais, uma marca do povo francês. Inertes. E até quando aquilo duraria? O que aconteceria conosco? As respostas para minhas perguntas não estavam nas paredes de um templo. Antes, estavam no relógio: no bater das horas, no passar dos dias. Fui incapaz de conter um riso, debochado e desaprovador, ante a recusa de um misticismo que regia minha vida desde que eu me lembrava. O que haviam feito comigo?


Meneei a cabeça, como se tentasse afastar aquelas divagações. Em volta, não mais que meia dúzia de parisienses rezavam em silêncio. Olhei novamente a parede. Fatalité. Os dedos tocaram a pedra entalhada. Fatalité. E naquele momento, apesar do meu ceticismo religioso recém-adquirido, não pude negar que aquela inscrição... Havia algo de quase profético nela. Como se pressagiasse alguma coisa. Arqueei os lábios num sorriso triste, lançando-lhe um último olhar. E, enquanto me encaminhava para fora da catedral, ocorreu-me que a palavra “fatalidade”, entre outras definições, podia significar "destino inevitável". Fosse um reflexo do meu estado de espírito ou da realidade do tempo em que eu vivia, esta pequena descoberta deixava bastante claro um aspecto especial da situação: a forte oposição entre um "destino inevitável" e a tão almejada "liberdade", a qual reflete, em seu significado, a capacidade de regermos nosso próprio destino. Dois termos tão contemporâneos e tão incompatíveis. E isso, há de se convir, é no mínimo curioso.


Aluna: Larissa Mattos
Turma: Formada em 2011

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Sherlock Holmes em: O Receio do Prefeito

I – O pedido do prefeito

Quando acordei na quinta-feira, olhei imediatamente para a janela onde vi, como já imaginava, meu amigo olhando fixamente para a movimentada Baker Street. Aquela cena estava me perturbando profundamente, uma vez que eu estava sendo forçado a vê-la desde sábado. Admito, no entanto, que era melhor vê-lo assim do que utilizando os entorpecentes, como costumava fazer quando ficava muito tempo sem um grande caso.
Fiquei alguns minutos refletindo se deveria me intrometer. O seu jeito reservado me impedia de dizer muitas coisas que tinha vontade, mas dessa vez eu não resisti.
– Holmes – comecei – Eu realmente acho que ficar aí quase sem comer ou se mexer não é a melhor forma de se ocupar e...
– Sei que você não prefere a cocaína – me interrompeu – e já me convenci de que o melhor remédio para uma mente sem exercícios é justamente exercitá-la, por mais que seja com banais observações Por certo tempo, me perguntei onde poderia estar o pai dos filhos da nossa admirável vizinha aqui da frente. Ficou claro para mim quando o carteiro chegou à sua casa sem passar em mais nenhuma outra na rua. Imediatamente olhei para o seu braço e tive a confirmação das minhas suspeitas. O carteiro em questão é de um grupo especial que só faz entregas a parentes de militares: eles usam uma faixa azul no braço esquerdo. No entanto, acho que a mulher em questão não é tão admirável assim... Para uma esposa de militar que serve na Índia, como descobri há pouco pelo tipo de envelope usado por ele nas cartas, ela vive melhor do que deveria. Sim, ela poderia ter um pai ou uma mãe em melhores situações financeiras.
– Certamente – disse eu, fingindo interesse.
– Mas há algo de peculiar. As roupas, os brinquedos, tudo do filho mais novo é melhor e mais caro que dos outros dois filhos. Ele poderia ser o favorito, mas a mãe trata os três filhos com igual amor. Essa noite minha hipótese foi confirmada. Um homem bem apessoado e evidentemente rico chegou à casa com uma espécie de pasta que, pela forma como ele a segurava, só poderia conter dinheiro ou qualquer coisa valiosa, e entregou à mulher com certo pesar. E, como imaginei, abraçou o mais novo e lhe deu um presente, mas apenas cumprimentou seus irmãos. Aposto qualquer coisa que o garoto mais novo não é filho do militar, embora ele ache que seja.
– A Sra. Hudson também aposta, e o resto da rua inteira. Francamente, Holmes, se você saísse um pouco e conversasse com seus vizinhos, saberia muitas coisas sem ter que passar fome!
– Mas aposto que você adoraria saber como o Sr. Harris ganha o dinheiro tão bem aplicado em seus lindos sapatos de couro.
– Ele tem um negócio com os boxeadores que lutam no centro da cidade, fica sabendo antecipadamente os resultados e os vende aos apostadores - respondi.
Meu amigo perdeu um pouco do brilho em seus olhos. Parecia reunir todas as suas forças para me contar algo que eu não poderia ter ouvido socializando na Baker Street.
– Aposto que você não sabe...
Jamais soube do que não sabia, pois a Sra. Hudson irrompeu no quarto, interrompendo meu amigo, que fez uma cara de quem tinha seu chute cortado em cima da linha do gol.
– Senhores – disse ela – há dois homens lá embaixo que desejam falar com vocês.
Autorizamos a subida dos homens e eles entraram no apartamento sem cerimônia.
Eles eram um pouco parecidos; minha primeira opinião foi de que eram irmãos. Não eram gordos, mas tinham consideráveis barrigas, os cabelos arruivados rareavam no topo da cabeça e seus vastos bigodes começavam a ficar grisalhos. Caracterizando-os assim, poderiam ser gêmeos, mas as fisionomias eram completamente diferentes.
Eles tinham uma diferença de dois ou três anos, apesar de aparentarem ter dez. O irmão mais velho tinha o rosto muito envelhecido, maltratado pelo sol, com sardas que pareciam só recentemente ter recebido o devido tratamento. O mais novo tinha uma aparência jovial, traída pelos fios brancos. Seu rosto era de alguém que teve uma vida fácil, ao contrário do irmão.
– Sr. Holmes – adiantou-se o irmão mais velho – vim aqui por causa do meu irmão, deixe-me apresentá-lo.
– George Lewis – disse simpaticamente o outro, apertando nossas mãos.
– Não sei se preciso me apresentar – continuou o mais velho.
– Claro que não, Sr. Sebastian Lewis, ou deveria dizer prefeito Lewis. Ainda não tive a oportunidade de felicitá-lo pela reeleição, você é justo e honesto, foi muito merecido.
– Obrigado, Sr. Holmes. Talvez os 75% dos votos queiram dizer que fiz um bom trabalho, mas, é claro, graças a você! Fiz questão de reconhecer isso oficialmente nos jornais, dizendo que você que solucionou o caso, mas por algum motivo os jornalistas não gostam de dar-lhe o devido crédito.
– Sim, é verdade, os jornalistas não gostam muito do meu trabalho. Estamos sendo grosseiros. Watson, este é o meu amigo Bastian, prefeito da cidade de Dartford, o mais honesto que já conheci. Resolvi um caso de roubos na cidade dele uns três anos atrás.
– É um prazer conhecê-lo – disse eu – Se Holmes fala bem de alguém, é porque este alguém merece.
– Agora – disse Holmes – vamos ao que interessa. O que os traz aqui?
O irmão mais novo esfregou as mãos e desatou a falar, enquanto seu irmão engolia seco.
– Há quinze dias, achei um bilhete embaixo da minha cama, que dizia “A quinta morte será a sua”. Minha primeira reação foi me espantar, mas depois pensei bem e me acalmei. Pensei que não tenho inimigos, sou um grande amigo das crianças da cidade e tive certeza de que era uma brincadeira... Então, cinco dias depois, um homem foi assassinado na cidade. Eu já havia jogado o bilhete fora e não liguei um fato ao outro. Mais cinco dias depois, uma mulher foi assassinada de forma parecida; não fiquei sabendo, pois estava na zona rural. Então, mais cinco dias e um homem morre assassinado. Quando cheguei à cidade, imediatamente me lembrei do bilhete, resgatei-o do lixo e pedi ajuda ao meu irmão, pois eu sabia que ele o conhecia.
– Quando foi a última morte? – perguntou meu amigo
– Esta madrugada.
– Então temos cinco dias antes que mais alguém morra, presumo.
– É o que parece.
– Chame uma carruagem, Bastian. Eu e Watson, se ele quiser, vamos fazer nossas malas e partiremos em uma hora. Enquanto estivermos viajando, farei algumas perguntas que julgo necessárias.

II – A pequena cidade

Levamos algumas horas para chegar lá. No caminho, ouvimos a história dos irmãos; ainda tenho um rascunho malfeito daquele dia, que é assim:
“Os irmãos vêm de família humilde, que tinha uma pequena propriedade na zona rural nos arredores da cidade de Dartford. Viviam da venda de sua pequena criação de animais, e se alimentavam basicamente do que plantavam. Quando o pai faleceu, o irmão mais velho, Sebastian, com dezenove anos, começou a trabalhar na pequena propriedade, que se manteve como era na época do pai.
George, depois de alguns anos, começou a trabalhar na farmácia da cidade. Como a família já era autossuficiente, o dinheiro foi todo aplicado para a expansão da propriedade. Depois de dez anos com George ganhando dinheiro e Sebastian aplicando-o nas terras, tornaram-se os maiores proprietários da região. Contrataram empregados para trabalhar em seus domínios e hoje George só os supervisiona uma vez por mês e verifica seus rendimentos. Bastian se envolveu com política até se tornar o prefeito da cidadezinha, que graças a ele está crescendo. Pelo visto, não teve nenhum problema com a oposição, com exceção de um assessor de seu concorrente que vive criticando seu trabalho, embora ele seja muito bom.
Ambos vivem na cidade de Dartford; moravam na mesma casa até mais ou menos um ano antes do episódio. George, assim que parou de trabalhar na farmácia, resolveu aproveitar a “aposentadoria” longe do irmão, que tinha certeza que sua partida vinha do desejo de se casar e constituir uma família. Todavia, a mudança não foi grande coisa, a nova casa de George ficava a, no máximo, 500 metros da do irmão.
A rotina deles é, para alguns, invejável. George fica dez dias por mês na fazenda deles para verificar os rendimentos e Sebastian passa cinco horas por dia trabalhando em seu gabinete resolvendo os problemas da cidade, coisa que ele adora, talvez por ter se acostumado a trabalhar na fazenda doze horas por dia ao sol. O resto do tempo eles passavam jogando e ficando com os amigos. O prefeito é adorado por seu trabalho e sua honestidade e George se relaciona muito bem com todos, é amigo de toda a cidade”.
Era triste uma tragédia atrapalhar vidas tão boas.
O Sr. Sebastian nos levou a um sobrado bem grande um pouco afastado do lugar onde eles moravam e ocorreram as mortes. Era bem agradável, uma sala gigantesca rodeada por três quartos, um escritório e uma também grande sala de reuniões, com porões e sótão.
– Comprei para o meu irmão, quando ele quis se mudar, mas ele fez questão de morar perto de mim. Decidi então usá-lo como um pequeno hospital. Todavia, podem ficar aqui o tempo que precisarem.
– Quatro dias. – disse Holmes – Para evitar outra morte.
Passamos uma parte da tarde descansando da viagem. Quando eram cerca de 15h30, George nos levou à única cena de crime que ainda não havia sido limpa. A casa do homem morto não distava mais que 500 metros da de cada irmão, o que fazia a cidade parecer ter todos os seus pontos equidistantes. Não são muitos os detalhes: duas facadas no peito, e a casa intacta, exceto pela fechadura da porta de entrada, que havia sido arrombada.
Holmes fez questão de visitar as outras residências, mesmo sabendo que haviam sido limpas. Embora sempre fossem eventos trágicos, era divertido acompanhá-lo em seus casos. Dessa vez ele não pediu ajuda aos Irregulares de Baker Street, um grupo de meninos de rua a quem paga para achar os suspeitos quando eles desaparecem, nem tentou pular do telhado da casa . Ele andava em uma indissolúvel linha reta, e na volta passou pelas ruas abrindo as portas de todas as casas, perguntando se havia alguma Mary em cada uma. Visitamos as casas dos outros falecidos e os cenários eram iguais: a casa intacta e a fechadura arrombada.
Quando chegamos à nossa estalagem, fui dormir, enquanto meu parceiro sentou, fumou e permaneceu acordado.

III – O caso da mãe coruja

– Posso imaginar o que está acontecendo.
Foi assim que eu acordei extremamente cedo no dia seguinte, com a voz suave e convicta do meu colega.
– E pode me contar? – Perguntei sem muita esperança.
– Posso te dar a luz. Você consegue descobrir sozinho.
“Para você o caso não pareceu tão peculiar quanto para mim. Conhecendo os anais do crime, fica tudo muito estranho. Criminosos que não querem ser reconhecidos não saem por aí distribuindo bilhetes de quem vão matar, e se quisessem, por que só para um, para o último, o irmão do prefeito? Lembre-se dos Scowers; eles são o tipo de assassino que manda avisos, não se importam de matar alguém em plena luz do dia e com centenas de testemunhas. Querem ser reconhecidos e temidos".
“E mais, o criminoso que tem algum tipo de interesse, mata e ‘faz a limpa na casa’ rouba tudo que pode. Ele não queria ter interesse, mas foi suficientemente ganancioso para roubar uma ou duas coisas de cada casa. Eu quase descartei algum tipo de revanche, pois muitas vezes o assassino estampa a vingança na cena do crime, como ‘rache’ ou ‘o signo dos quatro’, como você mesmo pode recordar".
“Uma última coisa: estamos em uma cidade pacata. Por que ele matou logo as poucas pessoas que deixavam a porta trancada? Como você pôde observar em minha busca pela inexistente Mary, todos deixam suas portas destrancadas. Já consegue traçar um perfil?”
– Não.
– Tem algum motivo mais incomum para matá-los. Ganancioso. Não quer ser reconhecido, mas, por algum motivo, teve que mandar o bilhete, faz parte de seu plano. Preciso visitar o prefeito!
A prefeitura me pareceu extremamente distante, porque todos os lugares que já havíamos ido distavam poucos metros uns dos outros, e eu até então pensava que a cidade era um grande hexágono. O centro da cidade tinha mais movimento e comércio; parecia até outra, bonita e arborizada.
– Comecei pelo centro, mas não achem que vou me esquecer do resto da cidade! – disse o prefeito, adivinhando meus pensamentos – O pessoal de lá é mais conservador, acham que o comércio vai fazer barulho e atrair mais coisas ruins. Já até culparam a urbanização que eu tenho efetuado pelas mortes.
– Seu opositor, imagino. – disse Holmes.
– Também.
– Podemos entrar no seu gabinete? – disse Holmes já entrando, sem esperar uma resposta.
Eu fiquei sentado de frente para o prefeito, um pouco constrangido, enquanto Holmes rodava o gabinete, media, cheirava, derrubava as coisas e calculava a posição em que elas caíam no chão.
– Quem entra aqui? – perguntou, jogando uns papéis no chão.
– Na teoria, qualquer um. Mas na prática só eu, meus assessores, meu irmão, o Sr. Winter, um viúvo um tanto excêntrico que gosta de conversar comigo sobre nada, às vezes amigos meus e raramente alguém fazendo algum pedido. Ah, o senhor havia me pedido um mapa da cidade, está aí na gaveta!
Meu amigo abriu a gaveta e dela tirou um mapa empoeirado. Abriu-o, girou-o de todas as formas possíveis e pediu para ficar com o ele; o prefeito consentiu, explicando que aquele era um reserva e que para ele só servia o maior e mais detalhado, que estava com os empreiteiros. Ao fechar a gaveta, Holmes deixou cair uma régua que estava em cima do móvel. O prefeito estranhou, jurando que a régua não era dele.
 Quando estávamos saindo do gabinete, entrou uma mulher de uns 45 anos, carregando um jovem de 17 pelo ombro.
– Senhor prefeito, bom dia! Queria saber se há novas pistas sobre os crimes.
– Este é o senhor Sherlock Holmes, o melhor detetive da Inglaterra. Ele está investigando o caso.
– Muito prazer, Sr. Holmes, tem alguma idéia a respeito do caso?
– Sim – disse ele, e continuou a sair.
– Faz parte dos métodos dele não contar nada a ninguém antes de resolver o caso – explicou o prefeito.
– Mas eu preciso saber em quem confiar! Phillip já fica o dia inteiro trancado em casa, não sei mais que medidas tomar para protegê-lo.
– Mãe, eu já sei me cuidar sozinho – falou finalmente o rapaz.
– Eu sei que você é a melhor pessoa para resolver isso. Conheço-lhe, sei que é um bom prefeito e seu irmão é como um pai para o Phillip. Mas está demorando muito. Sente-se filho, ou vai se cansar. Andamos muito até aqui.
– Corremos, na verdade. Mamãe acha que, se eu correr, tenho menos chance de ser morto.
– Pare de falar isso ou vai lavar a boca com sabão! Senhor Holmes, precisamos muito de você, espero que seja tão bom quanto dizem.
– Sou sim, disse e saiu.
O nosso trajeto de volta foi incomodado pela Sra. Dodd, que foi atrás de nós tagarelando. Falava que tinha que trabalhar e pedir para George Lewis ficar com Phillip, que gastou dinheiro reforçando a porta do quarto de Phillip...; no resto eu não prestei atenção ou não entendi, mas só ouvia o nome de Phillip, e fiquei com certa pena do rapaz.
À porta de nossa estalagem a senhora Dodd parou para conversar com outra senhora, provavelmente sobre Phillip. Fizemos menção de entrar, quando eu olhei para Phillip e exclamei sem querer:
– Haja paciência!
– A minha já está esgotada – respondeu o rapaz rindo.
– Perdi a chave! – exclamou Holmes, verificando os bolsos – Estamos trancados aqui fora!
– Tudo bem. – disse Phillip, forçando a porta – Aprendi um truque fantástico, caso um dia minha mãe me deixe trancado no quarto com fome. – e arrombou a porta.
– Obrigado – disse Holmes se despedindo – e guarde comida no quarto, porque pelo jeito dela, só tende a piorar! – e apontou para a Sra. Dodd.

IV - Holmes sai e conversa

Pouco depois de chegarmos à nossa estalagem, Holmes pegou o casaco e tornou a sair. Tive que me convidar para ir junto com ele e ouvi uma resposta inesperada: “Seria ótimo”.
Ele não quis me dizer aonde estava indo, e eu tampouco perguntei, apenas o segui. Não é que eu seja absolutamente submisso ao meu amigo, ou não estivesse interessado de participar ativamente do caso - longe disso, foi difícil me conter. Todavia, a expressão em seu rosto mostrava que ele estava absolutamente concentrado, criando uma cadeia de pensamentos aos quais eu, nem com muito esforço, poderia chegar.
– Parece-me tudo muito claro – exclamou, quebrando o silêncio – Só preciso de alguns porquês, alguns pontos integrantes da cadeia de acontecimentos.
– Então aonde vamos? – não me aguentei.
– Ao melhor lugar para reunir informações: ao bar!
O bar da cidade era extremamente limpo e bem conservado. Havia muitos homens ébrios perambulando pelo lugar e meu amigo logo se misturou. Pediu bebidas para nós dois e se mostrou um ótimo conversador. Falou com todos os homens que lá estavam, mas seu principal alvo foi o Sr.Winter, que, extremamente ébrio, fez uma espécie de dossiê de praticamente todos os habitantes da pacata cidade. Eis a minha adaptação de algumas informações por ele apresentadas:
“Esta cidade é tranquila a maior parte do tempo, adoro viver aqui. Mas, de vez em quando, acontecem certas coisas que agitam o lugar. O caso dos roubos, que precisou de um detetive de fora para ser resolvido; a briga entre o prefeito e a oposição; e agora isso!”
“Eu acho o Bastian um ótimo prefeito. Está fazendo maravilhas com a cidade, adora as minhas ideias (e aqui ele falou de uma proposta estranha de adubo artificial criado por ele, o que comprovou sua excentricidade). Esses escândalos, para alguém de fora, como vocês, podem fazer parecer o Bastian um mau sujeito, mas o Meriville (o opositor político) é um péssimo sujeito, fica tentando reunir as pessoas para um tal de governo do povo, diz que a indústria é ruim, aliena ou coisa do tipo, diz algo sobre uma “luta de classes”, não sei, não entendo bem isso! Mas que deu uma briga feia, deu. Ademais, conhecendo-o como o conheço, duvido que o governo fosse ficar com o povo por muito tempo (e falou sobre uns projetos estranhos de infraestrutura).
Já o irmão do prefeito, não gosto muito dele. Ele tem, sim, algumas qualidades, é como um pai para o filho da maluca, a Sra. Dodd, mas, não sei, não gosto do jeito dele, parece que tudo o que ele faz é para agradar alguém, ele é realmente muito estranho. Vive dizendo ao irmão para parar de me atender, porque eu e meus projetos somos malucos (e falou que seria muito mais feliz se o George não existisse para impedir a realização de seus projetos).
Chamo-a de maluca, mas tenho pena dela. A Sra. Dodd sofreu muito nessa vida. O filho vivia doente quando era pequeno. Ela e o marido, porém, cuidavam muito bem dele. Mas quando Deus quer, a tragédia é inevitável! O marido começou a ficar maluco, assim como o pai e o avô, deu muito trabalho a ela por uns 6 anos e acabou se matando. Desde sua loucura, ela tem de cuidar sozinha do menino - talvez por isso a superproteção. Tenho para mim que o menino, mais cedo ou mais tarde, ficará maluco também”.
Falou, falou e falou muito mais. Falou das demais vítimas, que me pareceram não ter muita relação entre si para traçarmos um perfil da próxima, falou dos pequenos ladrões da cidade, de um empreiteiro que não gosta do prefeito.
Estava anoitecendo quando =saímos do bar. Na volta para a nossa estalagem, passamos pela casa da Sra. Dodd, que estava toda trancada. Ela havia tirado do jardim tudo o que pudesse ser roubado, deixando apenas o latão de lixo com um pedaço de pau encostado. No outro lado da rua, na casa de George Lewis, a cena era exatamente a mesma. Todas as ruas da cidade estavam desertas!
– Matar o irmão é um bom motivo de atingir o prefeito. Muito pior do que matar o próprio. – arrisquei pensando no empreiteiro e no opositor.
– É um palpite – disse e saiu. Dessa vez estava com cara de quem não queria ser acompanhado.
Voltou duas horas mais tarde.
– Daqui a quarenta minutos virão o prefeito, seu irmão, o principal interessado, e dois policiais. O caso está resolvido. – Continuou:
– Voltei à casa das vítimas, fui à casa dos irmãos Lewis e cheguei a uma conclusão.
– Pode me contar?
– Quem seria o responsável pela morte de George Lewis e mais quatro pessoas? Acho que sim. Phillip Dodd.

V – A conclusão do caso

– Estamos aqui reunidos para prendermos o assassino de três pessoas, que planeja assassinar mais duas – disse meu amigo quando todos já estavam acomodados na grande sala principal de nossos aposentos – Eu tenho um plano, mas vocês precisam me obedecer – disse, olhando para os policiais. Eles consentiram, embora relutantes. – O esquema é bem simples: a porta desta sala está trancada, prendam George Lewis.
 Com mais relutância ainda, prenderam-no.
– Sinto lhe informar, Sr. Prefeito, mas a quarta morte seria a sua!
“Primeiramente, tentei achar um padrão para as mortes, e, andando apenas em linha reta, tive uma ideia, que foi confirmada com a visualização do mapa da cidade. As casas das vítimas formavam três quintos de um pentágono. Havia três ou quatro possibilidades de se fechar o pentágono, e uma delas era passando pela casa do prefeito e de seu irmão. Supus que o assassino quisesse arrumar um falso padrão para os assassinatos, para disfarçar seu verdadeiro motivo: a ganância. Você poderia dar ao seu irmão o que ele quisesse, mas ele queria todo o dinheiro e as propriedades só para ele.
Foi tudo minuciosamente planejado. Sua primeira ideia, eu suponho, foi criar um padrão falso. Uma forma geométrica no mapa, portas arrombadas e três facadas em cada vítima. Ele achou o culpado perfeito, o menino cujo pai e avô tinham problemas psiquiátricos, o qual toda a cidade dizia que ia seguir pelo mesmo caminho; fez amizade com ele, ensinou-o a arrombar portas e o código Morse, entre outras coisas. Comunicava-se com o menino pelo latão de lixo, com o pau que ficava escorado nele; para o menino era ótima a sensação de ter um pai e um amigo. Havia inúmeras formas de formar figuras geométricas no mapa cruzando com a casa de seu irmão, mas somente o pentágono cruzaria com as poucas residências que ficam de portas trancadas. Bastou ele comprar a última casa para se fazer de vítima, por isso não o sobrado em que estamos.
Por que um assassino que pretende avisar a morte põe um bilhete tão escondido, embaixo da cama? Pois queria fingir ser o único sortudo a achar o bilhete, tanto que achei na casa dos outros três e do senhor, prefeito, bilhetes bem escondidos debaixo das camas.
O plano era executar os três primeiros sem alertar ninguém, deixando pouco tempo para algum detetive resolver o caso. Para isso, foi à sua propriedade rural com o pretexto de cuidar dos negócios depois da primeira morte, que passou despercebida, e durante o tempo em que esteve lá, dizia ir dormir no final da tarde, quando na verdade vinha para a cidade executar as mortes na madrugada. Para todos os efeitos, não poderia ser ele, que estava na zona rural.
Voltou, soube do assassinato e “lembrou-se” do bilhete; contou ao irmão, mas seria tarde demais para chamar algum detetive. Depois de cinco dias mataria o irmão, em mais cinco seria quase morto.
Ele mandaria um pedido de socorro para Phillip em código Morse, que arrombaria as portas de sua própria casa e da casa de George para salvar o seu “quase pai”. George se esfaquearia de raspão com a própria faca, usada nas outras mortes, e chamaria socorro. O menino seria internado e ele ficaria com todo o dinheiro. Por isso, Watson, o culpado seria Phillip Dodd".
Tenho pena do Sebastian. É um homem muito bom, ama o irmão. Vai viver amargurado até o fim de seus dias – disse Holmes, quando já estávamos de volta à Baker Street.


Aluna: Beatriz Dettmann
Turma: 1211 / 2014

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Das 6:00 às 18:00

   O metrô é o melhor meio de transporte no Rio de Janeiro em meio ao caos atual. Muitos o escolhem. Multidões, no mesmo horário.
    Às 6:00, os portões abrem na Pavuna. Por volta das 7:00, a composição chega ao Centro da cidade, onde a maioria desce. Eu vejo as portas se abrirem na Central e muitos saem, porém nada penso; estou distraída ouvindo John Coltrane.
  "Próxima estação: Carioca. Desembarque pelo lado direito". Tantos saem do vagão que até desocupam assentos. Penso. Estalos de sapato alto acompanham a música, tilintar de chaves fazem o som do prato, vozes e unhas batendo em telas fabricadas na Ásia formam um baixo único. Uma nova música se forma. Cada uma daquelas pessoas possui função insubstituível nesta orquestra. No entanto, ela logo se desfaz, e todos se dirigem ao trabalho, onde são altamente substituíveis. E se vão. E eu penso. Penso na merda que estou indo fazer, e nem são 8:00.
    Quando desço do metrô, poucos fazem o mesmo. Eu não deveria continuar, e por alguns instantes acredito que o senhor ao meu lado concorda, e acha que estou longe do meu "dever". Ele estava certo. No meu destino, por algumas horas me sinto livre do meu "dever", da minha sanidade e de tudo que me reprime diariamente. Pena que dura pouco.
    Olho para o relógio. Almoço. Ao fazê-lo, penso no meu trajeto até o restaurante. Penso na moça com olhar triste e gostaria de poder ajudá-la, mas eu precisava sair da multidão naquele horário (ao fugir do meu dever, torno-me paranoica). Penso no senhor que me repreendeu com olhares e rio, pois acho que ele sabia o que eu estava indo fazer.
    Pago a comida. Vejo um marginalizado pelo sistema a pedir comida. Digo para ele que pago, e, mesmo com o gerente do restaurante com muita raiva, meu pobre companheiro serve-se e come. Resolvo ficar ali até ele acabar, o que não demora.
     Saio. Lembro que não deveria ter gastado o dinheiro, visto que tinha pouco. Sobram-me dez reais. Restam-me oito horas no Centro da cidade. Ando pelas ruas comerciais. Rio dos anúncios. Choro pela criança segurando outra criança e pedindo esmola. Paro e me forço a pensar que aquilo era um golpe, mas não consigo.
     Compro um livro de dois reais. Última aquisição. Com ele, passo uns muitos instantes atenta a só uma coisa, quando me vem à cabeça: se alguém o vendeu por dois reais, por quanto não o comprou? Eu odiaria ter de vender meus livros, mas talvez "Vanessa" (este era o nome que constava na dedicatória) não teve opção.
     Alguém chega e senta ao meu lado. Fico feliz por ter sido aquela pessoa. Abraçamo-nos, e nesses milissegundos penso que já senti o mesmo por outros; senti-me mal. Ele me pagou uma Heineken, e conversamos sobre móveis. Conversa boba, mas me agradou. Depois foi embora; eu fiquei.
   Cruzei a Rio Branco. Olho para todos já em êxtase, uma vez que o expediente já está quase acabando. Algumas moças mexem freneticamente no cabelo ao olhar para o relógio.
    Resolvo ver meu pai sem que ele me veja. Não sei se consegui, mas ele estava lá... estressado, cigarro com muitos centímetros de cinza. Falava mais que tragava. Um barulho estranho se intensifica. Fico tonta. Olho para meu pulso, mas esqueci de pôr o relógio. Vejo no celular: 17h48.
     Corro. Ou melhor: ando bem rápido. Meu destino é a porta do metrô. Lembro que não comia havia algumas horas, mas cruzo com um moço que provavelmente não comia havia alguns dias; foco então no meu trajeto.
    Chego à Presidente Vargas. 17h56. A hora do show se aproxima, porém dezenas já se empurram nas escadas. Um camelô ouve "Spring Love", de Stevie B, tão alto que posso sentir minhas células auditivas definhando. Como amo ver as pessoas, ainda mais nesse horário.
  18h. Mais parece cena do apocalipse. Homens, mulheres, altos, baixos, ricos, pobres (aparentemente): todos lutam por um pedaço no chão para pôr seus pés. A entrada é curta, e da minha visão parece um funil - como no clipe de "Another brick on the wall". Fico com medo. Sempre me assustaram essa música e essa ideia.
     Eles se esbarram. Trocam calor e olhares de raiva. Não trocam seus pensamentos e histórias. As 18h sempre me fascinaram: a jornada acabou. Milhares de histórias. Milhares de possibilidades, e todas elas estão entrelaçadas. Talvez, se eu não desse o almoço ao mendigo, não encontraria meu amigo. Talvez, se tivesse respondido aos olhares do senhor por volta das 7h30, não teria me sentido livre ao negligenciar meu dever.
     Conto minha viagem de um dia. E, nela, foram omitidos muitos fatos. Contudo, desejo que o leitor compreenda a complexidade da vida urbana em geral pelos olhos de uma menina de 17 anos, curiosa pelas histórias cotidianas de estranhos com os quais cruza na rua e em busca de porquês, de respostas para perguntas que ainda nem fez.
    "Sempre encontramos uma pergunta e, quando achamos a resposta, perguntamos outra vez, e assim por diante. Porém, no fundo, não seria sempre a mesma pergunta e a mesma resposta?". Corra, Lola, corra.


Aluna: Flávia Beatriz
Turma: 1209 / 2014

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Capricho árabe

Caríssimo amigo Joaquim,

Não me condene antes que me explique.
Depois, espero que me perdoe.
Como você já ficou sabendo pelos meus pais e pela adorável vizinhança, fugi novamente com Carmen e Rodrigo. Fugi, pois não aguentava mais essa constante inquietação dentro de mim. Ora, meu caríssimo, você sabe como preciso sempre ver coisas novas, conhecer novas pessoas e novos lugares. A mesmice deixa-me triste e cabisbaixo. Com os ciganos posso fazer o que gosto; vivo bem, tratam-me bem: não me faltam comida e conforto, embora a repreensão a esse povo milenar seja deveras injusta, infundada e cruel.
Combinei todos os detalhes da fuga dois dias antes com Carmen, durante nossos breves encontros na Plaza de las Abejas. Fui embora na quarta-feira, de madrugada, quando as ruas estão sempre desertas. Levei comigo não mais do que uma pequena valise com algumas mudas de roupa, dinheiro e papel pautado para escrever música, além da guitarra, que daqui em diante será responsável pelo meu ganha-pão.
Agora, amigo, desejo falar-lhe sobre um fato particular que aconteceu enquanto estávamos em Granada, mais precisamente em Sacromonte. Chegamos uma semana depois da minha fuga, e ficamos lá por um mês. Durante esse período, alguns de nós fazíamos ocasionais apresentações em praça pública, ou atendíamos a jovens enamorados de mente aberta que desejam conquistar seus amores com a ajuda de uma bela serenata. Às vezes, esses jovens procuravam apenas a mim. Achavam que o violão era o mais romântico dos instrumentos musicais.
Lembro-me bem que era um dia curiosamente quente de inverno. Estava Alzira lendo a minha sorte quando chegou até nós um rapaz de semblante tranquilo, não muito belo, adepto da esdrúxula moda dos bigodes. Informou-nos seu nome. Disse que gostaria de falar com Francisco, ao que respondi-lhe que falava com o próprio. Não fez cerimônia e contou-nos seu idílio, pedindo ao final que Alzira lesse a sua sorte e, obviamente, uma serenata. Ela se retirou para que pudéssemos acertar todos os detalhes. Antes de nos despedirmos, o jovem mostrou-me uma foto de sua amada.
Acontece que a senhorita retratada na fotografia sempre comparecia rigorosamente a todas as nossas apresentações em praça pública. Era ela que, timidamente, nos assistia, aplaudia fervorosamente ao final de cada música e vibrava com as danças. Entretanto, nunca nos falamos.
Antes mesmo de saber que a jovem já tinha uma situação com outra pessoa, eu já não conseguia parar de pensar nela. Como é possível que alguns encontros, sem uma única troca de palavras, deixassem-me em tal estado?  Restavam-me, pois, as deliciosas especulações, meus sonhos e minhas perguntas, que cabe à imaginação dos apaixonados responder. Passava horas a fio a especular seus gostos, seus afazeres, seus ideais, sua vida. Devaneava, apenas pensando se ela notara minha existência, insignificante quando comparada a sua suntuosidade.
Eu gostava dela sem pena de mim mesmo. Pensava estar disposto a tudo para vê-la mais algumas vezes, para alimentar mais minha imaginação. Tinhas idealizações e ideias ridículas. Chegava a comparar-me aos trovadores medievais. Sentia um misto de censura a mim mesmo com nuances de um romantismo inconsequente e exacerbado.
Qual não foi minha decepção ao saber que minha querida era comprometida? Muito provavelmente apaixonada por outra pessoa? Mesmo assim, não parei de ter os mesmos sonhos: bastava apenas adaptá-los a uma nova condição. Eles não precisam ser realizados, contento-me apenas em sonhar. A adoração é o amor em sua forma mais pura e débil, da qual os poetas de nosso tempo tanto gostam.
Para a serenata, optei pelo Capricho Árabe, por tratar-se de uma mistura de amor, melancolia e paixão que as serenatas demandam. Na ocasião, mais uma vez vi a jovem e, inclusive, acho que fui reconhecido. Os dois adoraram a música. Observei que havia entre eles a reciprocidade de belíssimos sentimentos, necessários para a futura vida conjugal.
Joaquim, espero que este extenso relato tenha conseguido amolecer seu coração. Conheço-lhe bem, tenho certeza de que resistiu ao impulso inicial de amassar esta carta ao ver o remetente. Sei que chegou até aqui e está rindo e me amaldiçoando inocentemente.
Escreva-me. Sinto saudades, desejo saber como está. Partiremos para Córdoba semana que vem. Assim, espero ansiosamente sua carta, aqui em Sacromonte.

Seu amigo,
Francisco Tárrega.


Aluna: Gabriela Medina
Turma: 1209 / 2014

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Distante

Fazia frio, como sempre.
O portão que demarcava os limites da propriedade abria e fechava com o vento indeciso da noite solitária. As luzes do casebre estavam completamente apagadas, mas ela não tinha medo do escuro. Não mais. Sentada no pequeno degrau na varanda, a garota observava, em silêncio, o movimento na casa ao lado. O pequeno lampião aceso sobre a cerca iluminava a dança de dois apaixonados. O garoto dos seus sonhos agora bailava e ria com uma desconhecida, a qual já namorava havia um tempo desinteressante. Ainda assim, dava para ouvir, ao longe, o som da felicidade e de alguns "eu te amo", quebrando o silêncio confortante da madrugada no campo.
Apesar de tudo isso, ela continuava ali. Observando. Quieta. Ao longe. Sempre ao longe. Distante. Invisível. Sempre.
De repente, o último foco de luz por aquele fim de mundo se apagou. Eles haviam entrado, ainda animados e felizes, prontos para fazer sabe-se lá o que ao longo do resto da noite. Já fazia bastante tempo que frio não era problema para o seu vizinho.
Demorou um minuto  talvez dois  para a garota perceber lágrimas descendo pelo seu rosto. O costume era tanto que tornava-se difícil notar quando acontecia. Contudo, não houve pressa em secá-las. A pobre menina apenas deixou que percorressem o caminho pelo seu rosto até que cansassem e pingassem no chão.
Há um tempo, haveria ali alguém para aplacar sua tristeza, para fazer-lhe companhia em meio ao breu, para espantar os perigos da escuridão, para provocar risadas por motivos diversos e dar-lhe um beijo de boa noite. Há algum tempo...
O barulho de passos dentro da casa ecoou. Alguém estava acordado e ela sabia bem que não deveria estar ali ainda a essa hora. Enxugou seu pranto rapidamente e, contornando a casa, pulou com facilidade pela janela do seu quarto. Já adequadamente vestida, deitou-se na cama, contendo as lágrimas que ainda restavam, enquanto continuava a observar a noite lá fora.
Fazia frio, como sempre.
O portão estava finalmente fechado.
Ele sempre esteve.


Aluna: Julianna S. Castro
Turma: 1209 / 2014