terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Fatalité

Fatalité. Essa foi a palavra, enegrecida pelo tempo e bem profundamente entalhada na pedra, que li numa das paredes da velha Notre-Dame, naquela tarde perdida de abril. Fatalidade: eis o simples verbete que, num tempo de exaltados discursos e sinceras orações, conseguiu aguçar-me os sentidos e despertar-me do sono entorpecido no qual eu me deixara cair, fosse pela fome (que nos assolava a todos), fosse pela descrença que regia meus atos. Descrença essa que, em minha busca desesperada por orientação, levara-me até a Catedral, até o antro dos velhos monges, ao refúgio daqueles que, outrora – e ainda agora –, condenavam meu povo às chamas do inferno. Eu estava no covil dos lobos e buscava respostas de um Deus no qual não acreditava.

Curiosamente, é no medo que encontramos nossa coragem. Eu, é claro, não julgava dessa forma. Em verdade, eu estava demasiado perdida para me importar com meus atos, suas motivações ou consequências. Estava, literalmente, sozinha. E, sobretudo, sentia-me sozinha. Voltei os orbes azuis, incisivos, para o altar. Alguns metros acima do chão, a figura do Cristo crucificado refletia a luz amarelada das velas. Fitei seu rosto por um instante. O semblante tristonho, sofrido, fez-me pensar se não estaria prestes a chorar pelo que via e ouvia naqueles tempos. Ou talvez por todos os tempos já passados? A essa conclusão, seguiu-se outra, adversa: era Ele, que diziam ser infinitamente misericordioso e sábio, quem deixava toda aquela barbárie acontecer. Ou não era? Naquele pequeno momento de epifania, a comiseração transformou-se em revolta. Desviei o olhar para a parede novamente. Fatalité.

Recostei a cabeça contra a pedra fria e suspirei. Internamente, eu tentava adivinhar qual teria sido a alma amargurada que quisera deixar esse estigma de infelicidade dentro dos muros da velha igreja. E que tempos tinham sido aqueles, em que a palavra misteriosa fora gravada? Uma época pior do que esta? Dificilmente, imaginei. Nada parecia ser pior do que o presente contraditório e imundo. Um tempo em que a França buscava sua liberdade galgada no massacre, escrevendo sua história com sangue de inocentes. Sangue dos miseráveis. O brio da conquista era não só aniquilado, mas suplantado pela desumanidade. Suspirei novamente.

Fosse pelos tempo passados, pelo tempo presente ou pela comunhão de todas as desgraças já realizadas na história do mundo, o fato é que todos os deuses pareciam ter nos abandonado, fechado seus olhos para a imundície que, em nome de uma deturpada liberdade, perpetuava em cada esquina e tornava-se, cada vez mais, uma marca do povo francês. Inertes. E até quando aquilo duraria? O que aconteceria conosco? As respostas para minhas perguntas não estavam nas paredes de um templo. Antes, estavam no relógio: no bater das horas, no passar dos dias. Fui incapaz de conter um riso, debochado e desaprovador, ante a recusa de um misticismo que regia minha vida desde que eu me lembrava. O que haviam feito comigo?


Meneei a cabeça, como se tentasse afastar aquelas divagações. Em volta, não mais que meia dúzia de parisienses rezavam em silêncio. Olhei novamente a parede. Fatalité. Os dedos tocaram a pedra entalhada. Fatalité. E naquele momento, apesar do meu ceticismo religioso recém-adquirido, não pude negar que aquela inscrição... Havia algo de quase profético nela. Como se pressagiasse alguma coisa. Arqueei os lábios num sorriso triste, lançando-lhe um último olhar. E, enquanto me encaminhava para fora da catedral, ocorreu-me que a palavra “fatalidade”, entre outras definições, podia significar "destino inevitável". Fosse um reflexo do meu estado de espírito ou da realidade do tempo em que eu vivia, esta pequena descoberta deixava bastante claro um aspecto especial da situação: a forte oposição entre um "destino inevitável" e a tão almejada "liberdade", a qual reflete, em seu significado, a capacidade de regermos nosso próprio destino. Dois termos tão contemporâneos e tão incompatíveis. E isso, há de se convir, é no mínimo curioso.


Aluna: Larissa Mattos
Turma: Formada em 2011