sexta-feira, 18 de julho de 2014

Capricho árabe

Caríssimo amigo Joaquim,

Não me condene antes que me explique.
Depois, espero que me perdoe.
Como você já ficou sabendo pelos meus pais e pela adorável vizinhança, fugi novamente com Carmen e Rodrigo. Fugi, pois não aguentava mais essa constante inquietação dentro de mim. Ora, meu caríssimo, você sabe como preciso sempre ver coisas novas, conhecer novas pessoas e novos lugares. A mesmice deixa-me triste e cabisbaixo. Com os ciganos posso fazer o que gosto; vivo bem, tratam-me bem: não me faltam comida e conforto, embora a repreensão a esse povo milenar seja deveras injusta, infundada e cruel.
Combinei todos os detalhes da fuga dois dias antes com Carmen, durante nossos breves encontros na Plaza de las Abejas. Fui embora na quarta-feira, de madrugada, quando as ruas estão sempre desertas. Levei comigo não mais do que uma pequena valise com algumas mudas de roupa, dinheiro e papel pautado para escrever música, além da guitarra, que daqui em diante será responsável pelo meu ganha-pão.
Agora, amigo, desejo falar-lhe sobre um fato particular que aconteceu enquanto estávamos em Granada, mais precisamente em Sacromonte. Chegamos uma semana depois da minha fuga, e ficamos lá por um mês. Durante esse período, alguns de nós fazíamos ocasionais apresentações em praça pública, ou atendíamos a jovens enamorados de mente aberta que desejam conquistar seus amores com a ajuda de uma bela serenata. Às vezes, esses jovens procuravam apenas a mim. Achavam que o violão era o mais romântico dos instrumentos musicais.
Lembro-me bem que era um dia curiosamente quente de inverno. Estava Alzira lendo a minha sorte quando chegou até nós um rapaz de semblante tranquilo, não muito belo, adepto da esdrúxula moda dos bigodes. Informou-nos seu nome. Disse que gostaria de falar com Francisco, ao que respondi-lhe que falava com o próprio. Não fez cerimônia e contou-nos seu idílio, pedindo ao final que Alzira lesse a sua sorte e, obviamente, uma serenata. Ela se retirou para que pudéssemos acertar todos os detalhes. Antes de nos despedirmos, o jovem mostrou-me uma foto de sua amada.
Acontece que a senhorita retratada na fotografia sempre comparecia rigorosamente a todas as nossas apresentações em praça pública. Era ela que, timidamente, nos assistia, aplaudia fervorosamente ao final de cada música e vibrava com as danças. Entretanto, nunca nos falamos.
Antes mesmo de saber que a jovem já tinha uma situação com outra pessoa, eu já não conseguia parar de pensar nela. Como é possível que alguns encontros, sem uma única troca de palavras, deixassem-me em tal estado?  Restavam-me, pois, as deliciosas especulações, meus sonhos e minhas perguntas, que cabe à imaginação dos apaixonados responder. Passava horas a fio a especular seus gostos, seus afazeres, seus ideais, sua vida. Devaneava, apenas pensando se ela notara minha existência, insignificante quando comparada a sua suntuosidade.
Eu gostava dela sem pena de mim mesmo. Pensava estar disposto a tudo para vê-la mais algumas vezes, para alimentar mais minha imaginação. Tinhas idealizações e ideias ridículas. Chegava a comparar-me aos trovadores medievais. Sentia um misto de censura a mim mesmo com nuances de um romantismo inconsequente e exacerbado.
Qual não foi minha decepção ao saber que minha querida era comprometida? Muito provavelmente apaixonada por outra pessoa? Mesmo assim, não parei de ter os mesmos sonhos: bastava apenas adaptá-los a uma nova condição. Eles não precisam ser realizados, contento-me apenas em sonhar. A adoração é o amor em sua forma mais pura e débil, da qual os poetas de nosso tempo tanto gostam.
Para a serenata, optei pelo Capricho Árabe, por tratar-se de uma mistura de amor, melancolia e paixão que as serenatas demandam. Na ocasião, mais uma vez vi a jovem e, inclusive, acho que fui reconhecido. Os dois adoraram a música. Observei que havia entre eles a reciprocidade de belíssimos sentimentos, necessários para a futura vida conjugal.
Joaquim, espero que este extenso relato tenha conseguido amolecer seu coração. Conheço-lhe bem, tenho certeza de que resistiu ao impulso inicial de amassar esta carta ao ver o remetente. Sei que chegou até aqui e está rindo e me amaldiçoando inocentemente.
Escreva-me. Sinto saudades, desejo saber como está. Partiremos para Córdoba semana que vem. Assim, espero ansiosamente sua carta, aqui em Sacromonte.

Seu amigo,
Francisco Tárrega.


Aluna: Gabriela Medina
Turma: 1209 / 2014

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Distante

Fazia frio, como sempre.
O portão que demarcava os limites da propriedade abria e fechava com o vento indeciso da noite solitária. As luzes do casebre estavam completamente apagadas, mas ela não tinha medo do escuro. Não mais. Sentada no pequeno degrau na varanda, a garota observava, em silêncio, o movimento na casa ao lado. O pequeno lampião aceso sobre a cerca iluminava a dança de dois apaixonados. O garoto dos seus sonhos agora bailava e ria com uma desconhecida, a qual já namorava havia um tempo desinteressante. Ainda assim, dava para ouvir, ao longe, o som da felicidade e de alguns "eu te amo", quebrando o silêncio confortante da madrugada no campo.
Apesar de tudo isso, ela continuava ali. Observando. Quieta. Ao longe. Sempre ao longe. Distante. Invisível. Sempre.
De repente, o último foco de luz por aquele fim de mundo se apagou. Eles haviam entrado, ainda animados e felizes, prontos para fazer sabe-se lá o que ao longo do resto da noite. Já fazia bastante tempo que frio não era problema para o seu vizinho.
Demorou um minuto  talvez dois  para a garota perceber lágrimas descendo pelo seu rosto. O costume era tanto que tornava-se difícil notar quando acontecia. Contudo, não houve pressa em secá-las. A pobre menina apenas deixou que percorressem o caminho pelo seu rosto até que cansassem e pingassem no chão.
Há um tempo, haveria ali alguém para aplacar sua tristeza, para fazer-lhe companhia em meio ao breu, para espantar os perigos da escuridão, para provocar risadas por motivos diversos e dar-lhe um beijo de boa noite. Há algum tempo...
O barulho de passos dentro da casa ecoou. Alguém estava acordado e ela sabia bem que não deveria estar ali ainda a essa hora. Enxugou seu pranto rapidamente e, contornando a casa, pulou com facilidade pela janela do seu quarto. Já adequadamente vestida, deitou-se na cama, contendo as lágrimas que ainda restavam, enquanto continuava a observar a noite lá fora.
Fazia frio, como sempre.
O portão estava finalmente fechado.
Ele sempre esteve.


Aluna: Julianna S. Castro
Turma: 1209 / 2014