quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Das 6:00 às 18:00

   O metrô é o melhor meio de transporte no Rio de Janeiro em meio ao caos atual. Muitos o escolhem. Multidões, no mesmo horário.
    Às 6:00, os portões abrem na Pavuna. Por volta das 7:00, a composição chega ao Centro da cidade, onde a maioria desce. Eu vejo as portas se abrirem na Central e muitos saem, porém nada penso; estou distraída ouvindo John Coltrane.
  "Próxima estação: Carioca. Desembarque pelo lado direito". Tantos saem do vagão que até desocupam assentos. Penso. Estalos de sapato alto acompanham a música, tilintar de chaves fazem o som do prato, vozes e unhas batendo em telas fabricadas na Ásia formam um baixo único. Uma nova música se forma. Cada uma daquelas pessoas possui função insubstituível nesta orquestra. No entanto, ela logo se desfaz, e todos se dirigem ao trabalho, onde são altamente substituíveis. E se vão. E eu penso. Penso na merda que estou indo fazer, e nem são 8:00.
    Quando desço do metrô, poucos fazem o mesmo. Eu não deveria continuar, e por alguns instantes acredito que o senhor ao meu lado concorda, e acha que estou longe do meu "dever". Ele estava certo. No meu destino, por algumas horas me sinto livre do meu "dever", da minha sanidade e de tudo que me reprime diariamente. Pena que dura pouco.
    Olho para o relógio. Almoço. Ao fazê-lo, penso no meu trajeto até o restaurante. Penso na moça com olhar triste e gostaria de poder ajudá-la, mas eu precisava sair da multidão naquele horário (ao fugir do meu dever, torno-me paranoica). Penso no senhor que me repreendeu com olhares e rio, pois acho que ele sabia o que eu estava indo fazer.
    Pago a comida. Vejo um marginalizado pelo sistema a pedir comida. Digo para ele que pago, e, mesmo com o gerente do restaurante com muita raiva, meu pobre companheiro serve-se e come. Resolvo ficar ali até ele acabar, o que não demora.
     Saio. Lembro que não deveria ter gastado o dinheiro, visto que tinha pouco. Sobram-me dez reais. Restam-me oito horas no Centro da cidade. Ando pelas ruas comerciais. Rio dos anúncios. Choro pela criança segurando outra criança e pedindo esmola. Paro e me forço a pensar que aquilo era um golpe, mas não consigo.
     Compro um livro de dois reais. Última aquisição. Com ele, passo uns muitos instantes atenta a só uma coisa, quando me vem à cabeça: se alguém o vendeu por dois reais, por quanto não o comprou? Eu odiaria ter de vender meus livros, mas talvez "Vanessa" (este era o nome que constava na dedicatória) não teve opção.
     Alguém chega e senta ao meu lado. Fico feliz por ter sido aquela pessoa. Abraçamo-nos, e nesses milissegundos penso que já senti o mesmo por outros; senti-me mal. Ele me pagou uma Heineken, e conversamos sobre móveis. Conversa boba, mas me agradou. Depois foi embora; eu fiquei.
   Cruzei a Rio Branco. Olho para todos já em êxtase, uma vez que o expediente já está quase acabando. Algumas moças mexem freneticamente no cabelo ao olhar para o relógio.
    Resolvo ver meu pai sem que ele me veja. Não sei se consegui, mas ele estava lá... estressado, cigarro com muitos centímetros de cinza. Falava mais que tragava. Um barulho estranho se intensifica. Fico tonta. Olho para meu pulso, mas esqueci de pôr o relógio. Vejo no celular: 17h48.
     Corro. Ou melhor: ando bem rápido. Meu destino é a porta do metrô. Lembro que não comia havia algumas horas, mas cruzo com um moço que provavelmente não comia havia alguns dias; foco então no meu trajeto.
    Chego à Presidente Vargas. 17h56. A hora do show se aproxima, porém dezenas já se empurram nas escadas. Um camelô ouve "Spring Love", de Stevie B, tão alto que posso sentir minhas células auditivas definhando. Como amo ver as pessoas, ainda mais nesse horário.
  18h. Mais parece cena do apocalipse. Homens, mulheres, altos, baixos, ricos, pobres (aparentemente): todos lutam por um pedaço no chão para pôr seus pés. A entrada é curta, e da minha visão parece um funil - como no clipe de "Another brick on the wall". Fico com medo. Sempre me assustaram essa música e essa ideia.
     Eles se esbarram. Trocam calor e olhares de raiva. Não trocam seus pensamentos e histórias. As 18h sempre me fascinaram: a jornada acabou. Milhares de histórias. Milhares de possibilidades, e todas elas estão entrelaçadas. Talvez, se eu não desse o almoço ao mendigo, não encontraria meu amigo. Talvez, se tivesse respondido aos olhares do senhor por volta das 7h30, não teria me sentido livre ao negligenciar meu dever.
     Conto minha viagem de um dia. E, nela, foram omitidos muitos fatos. Contudo, desejo que o leitor compreenda a complexidade da vida urbana em geral pelos olhos de uma menina de 17 anos, curiosa pelas histórias cotidianas de estranhos com os quais cruza na rua e em busca de porquês, de respostas para perguntas que ainda nem fez.
    "Sempre encontramos uma pergunta e, quando achamos a resposta, perguntamos outra vez, e assim por diante. Porém, no fundo, não seria sempre a mesma pergunta e a mesma resposta?". Corra, Lola, corra.


Aluna: Flávia Beatriz
Turma: 1209 / 2014

5 comentários:

  1. Muito bom! Saudade do bom e velho transporte público! Eu diria que é do que tenho mais saudades do Rio: andar de ônibus e de metrô. Não de tomar cotovelada, me espremer, não: do transporte fora do horário de pico, mais ou menos confortável. Sinto saudade de dormir ou ouvir música no ônibus, de ler no metrô, de ver toda essa fauna... Em Brasília, cedi à cultura do carro, fruto de uma cidade com um transporte público horroroso! Dirijo todo dia, em vez de aproveitar os tranquilos momentos de ser um passageiro, ou seja, de quando não se faz nada! Não sei por que as pessoas gostam tanto de carro... Quem dirige cotidianamente nunca escreveria um texto desses. =)

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    1. A minha resistência ao carro passa justamente por isso, apesar de habilitado. A justificativa soa ridícula à maioria, é óbvio, mas não troco minhas horinhas de música/leitura/divagações pela direção enquanto puder. Mais janela, menos volante.

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    2. Mais janela, menos volante, exato. E não adianta ser carona de carro, porque o motorista vai estar ali ao lado, com sua presença sufocante. No ônibus, não. É só você e você.

      Enfim, não deixem de atualizar essa bagaça! =)

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  2. Muito bom, adorei esse texto.

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